Ainda Trago na Boca
Implicada na língua, a linguagem não apenas descreve, mas é a própria experiência de criação de mundo. É através dela onde se elabora o que chamamos de real, o qual, passivo à gramática da língua, é inteligível. A totalização dessa experiência de linguagem como um processo de indexação - distinguir, reconhecer, denominar - não se elabora de modo autônomo e neutro, também é crivado na experiência da visão, do olhar. Partindo dessa síntese, é possível delinear os impactos que a mudança de uma língua, em seu exercício pleno, causa na experiência de mundo de uma comunidade; assim como, do outro lado, a imposição de uma língua também traz consigo elaborações que são imbricadas na territorialidade, na organização sociopolítica e na cosmologia de quem a impõe. É no mau encontro, na colonização, que a experiência de língua e linguagem projetada no território chamado de Brasil será maquinário não apenas de elaboração de uma realidade instaurada pelo invasor, como será arma de negação de outras realidades.
Aqui estamos diante de uma complexa relação onde o visível e o tangível são diagnósticos da inteligibilidade, daquilo que divide o real do não real. A imposição da língua portuguesa em consórcio com a negação do exercício das línguas aqui faladas (e posteriormente das línguas advindas do continente africano e reinventadas na diáspora negra), pretende fabricar uma consonância cosmológica - um projeto fracassado. Essa exposição se constrói no caminho onde as frestas reelaboram essa experiência de presença. Partindo da oralidade como um exercício territorial, uma paisagem em exercício constante, onde borram-se as fronteiras entre o visível e invisível, real e ficcional, humanidade e natureza. As obras aqui expostas são motrizes para pensarmos como os diversos traquejos de linguagem sugestionam a elaboração das visualidades e vice-versa. Desde a obra EQUÊ (2024) de Trojany (CE), perpassando pelas esculturas de Fykyá Pankararu (PE) e as fotografias de Mitsy Queiroz (PE) a exposição sugestiona um modo de fazer que está espelhado nas implicações territoriais e no truque como tecnologia de reencantamento. Em conversa, obras como de Pillar Rodriguez (BA), Kulumym-Açu (CE) e Agrippinna R. Manhattan (RJ) apontam para um olhar minucioso sobre aquilo que está na paisagem, apropriando-se do que é posto para criar novas possibilidades de agência a partir do visível. Esses caminhos conceituais denotam ângulos que são elaborações imbricadas desde o território; seja urbano ou rural. O título da exposição é um fragmento da canção “Coito das araras” (1979) escrita e interpretada por Cátia de França (PB). A autora - que em sua trajetória se estabelece numa profunda pesquisa territorial entre Pernambuco e Paraíba - narra com maestria as relações interespécies implicadas no episódio cantado na canção, esse que se revela a partir dos cantos das aves como propulsores de uma sequência de eventos que denotam uma agência relacional entre os corpos, as oralidades e as línguas que se encontram sobre a terra - em uma destreza de linguagem que anuncia um jogo com os sentidos, diz: ainda trago na boca, nos olhos, a visão da tua imagem.
Abiniel João Nascimento
Visitação: 05 de junho à 19 de setembro de 2025