Chamar o rio

O que acontece quando um rio ganha direitos legais? Se o mundo compartilhasse da cosmovisão de muitos povos indígenas, realizar tal pergunta estaria fora de questão, uma vez que eles são tratados como sujeitos. Na filosofia do bem-viver, o rio possui tanto o direito de existir como qualquer outro ser com vida, independente dele possuir ou não forma humana.

Por uma nova tentativa de proteção ambiental alinhada aos modos de vida dos povos originários, nas últimas duas décadas a aliança entre indígenas e ativistas não indígenas reivindica ações lícitas de reconhecimento dos rios enquanto pessoas jurídicas. Com o objetivo de garantir a saúde e a preservação dos rios, assim como de seus habitantes e de todos os seres que confluem com eles, medidas legais vem sendo adotadas em diversos países.

Por exemplo, o Rio Whanganui, terceiro mais longo da Nova Zelândia, é um ancestral do povo originário Mãori que em 2017 ganhou o status de pessoa jurídica e permitiu a população originária recuperar parte do controle que tinha sobre a área antes da Grã-Bretanha colonizar seu território em 1840. De acordo com a jurisprudência, todos os conselhos e comitês que fazem planos de gestão para o Rio Whanganui devem incluir representantes Mãori, garantindo sua presença em discussões na proposição de projetos de construção e intervenções que possam acarretar possíveis danos ambientais.

Contudo, nem todos os casos de reconhecimento dos rios como pessoas jurídicas são suficientes para a garantia de seus direitos, assim como os das pessoas humanas. "Somos todos iguais, mas uns mais iguais do que outros", como já diz o ditado. Este é o caso, por exemplo, do Rio Atrato na Colômbia, que mesmo após ter sido declarado uma entidade legal em 2016, segue com seus direitos violados; vide a constante poluição pelo garimpo. Ou seja, é necessário também a criação de sistemas que garantam o exercício da lei.

Ainda assim, conceder o status jurídico de uma pessoa a um rio, por mais que não seja uma garantia de sua preservação, é uma atitude que evoca saberes e modos de vida ancestrais numa escala macropolítica. Acreditando no impacto que a multiplicação desta ação possa ter na vida em coletivo, Chamar o Rio é uma exposição que aciona seu duplo sentido: dizer seu nome em voz alta e lutar por seus direitos. Entendendo que enquanto ativistas atuam juridicamente neste "chamamento" do rio, artistas o fazem por meio da linguagem visual e de ações subjetivas. Aqui, a compreensão de pessoa dada ao rio se faz por meio das poéticas visuais.

Com a presença de artistas indígenas e não indígenas, é pelo alcance da voz pronunciada em aliança que se apresentam trabalhos em diversas mídias (vídeo, performance, objeto, desenho, pintura, fotografia e foto-performance) de artistas cujas pesquisas não fazem distinção entre cultura e natureza, humanos e não-humanos; dicotomias essas essenciais para a manutenção da matriz colonial de poder.

Pautada num recorte da América Latina, pensando a veia aberta deste território enquanto um rio que sangra (para não esquecermos de Eduardo Galeano), apresenta-se artistas naturais da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, El Salvador e Venezula capazes de evocar as dimensões políticas e sagradas das águas. No ano em que o Brasil sediará a COP 30, evento no qual líderes mundiais, cientistas e atores da sociedade civil se reunirão para discutir ações para mitigar as mudanças climáticas, é fundamental colocar este tema também na agenda cultural.

É com esta intenção que a mostra dá continuidade ao chamamento da chuva pela dança dos povos originários e do vento cantado por Dorival Caymmi. Vamos chamar o rio.

Paula Borghi

São Paulo, agosto de 2025

Visitação:  09 de outubro de 2025 à 26 de janeiro de 2026