José Barbosa: A Escuta do Tempo - Javari

Falamos do passado como algo que não tem retorno. Nem observamos que acumulamos conhecimentos e tradições. Não faltam lembranças. Elas formam nossa memória. Repetimos, muitas vezes, o que já foi dito. Não faltavam passados que moram na cultura e inquietam as experiências (A. P. Resende).

Escutar o tempo exige atenção e silêncio. Desenhar no tempo a própria existência mítica, lírica, sagrada e ancestral pede sensibilidade, entrega e coragem. José Barbosa é desses artistas que desenha a complexidade da existência humana em um tempo vasto e na longa duração. O passado se torna longínquo  para um artista que nasceu em 1948, o presente se impõe no tempo do agora chamando-o para se posicionar e o futuro tende a diminuir. O tempo, então, traz um fluxo de imaginação incrível, a sua marca se fixa nos corpos, nos objetos, na paisagem presentes nas escritas visuais desse artista nascido em Olinda/PE, filho de dona Aurelina, devota de Nossa Senhora da Conceição (Iemanjá), imaginária recorrente em suas obras, e, do senhor Ernani, exímio marceneiro restaurador e o primeiro mestre de José Barbosa, depois vieram outros.

O artista escreve em suas plurais linguagens - a pintura, o desenho, a gravura, a talha ou escultura -, as subjetividades interiores, sonhos e devaneios, também, os acontecimentos e fatos do mundo objetivo que o marca existencialmente. Sobre isso considera Montez Magno[1] em um texto que apresenta Barbosa ao público, que a representatividade desse mundo visto, vivido e retraduzido pelo artista, está ligada teluricamente à paisagem real e mitológica da sua sempre presente cidade de Olinda. Nesse sentido aproximo José Barbosa por meio essa maneira onírica e até mesmo fantástica de narrar uma cidade, como o fez Gabriel Garcia Marques no livro Cem Anos de Solidão que narra a história de Macondo e suas situações de tempos mágicos, imaginados e fantásticos. Sabem ambos narradores que a imaginação desenha aventuras e ajuda a fugir do lugar comum.

Assim, José Barbosa narra a passagem do tempo em Olinda e agrega a isso outras referências das demais cidades onde habitou, incorporando e assimilando sutilmente alguns elementos presentes na produção da arte (nacional/internacional), "incluindo-se entre elas o uso deliberado da perspectiva linear, em alguns trabalhos ou de algo ligado à nova figuração. (...) em algumas paisagens mais recentes, nas quais massas de manchas difusas impregnam as suas aquarelas de uma expressiva indefinição que se situa no mundo da passagem do não ser para o ser" (Magno, 1981).

Essa exposição intitulada, José Barbosa: A Escuta do Tempo – Javari na Christal Galeria pretende trazer ao público a produção do artista em tempos dispersos de sua criação, ou seja, apresentar um conjunto de trabalhos realizados numa duração temporal entre os anos 1970 à atualidade. Um conjunto de poéticas que desencadeiam reflexões sobre as permanências e os deslocamentos temáticos, as insistências e as incorporações de elementos formais, estéticos e poéticos em sua produção. Assim, o tempo é nosso fio condutor, entretanto não o tempo cronológico, encadeado, homogêneo, mas, o tempo mítico, sagrado, telúrico, fantástico – onde tudo é possível - construído pelo artista na representação visual de si, do seu entorno e do  mundo. Para suportar muitas vezes as tragédias que assolam nossas vidas imaginamos outro mundo, outras histórias, outros/as nós - como o fez Balthus, Cícero Dias, Dalí, Frida Kahlo, Ghita Charifker, Maria Carmem,  Matisse e tantos outros/as.

Não obstante, essa exposição está ancorada em trabalhos inéditos do artista, criados exclusivamente para essa mostra. O agora de José Barbosa, um artista de 74 anos, que tocado pelo presente - sem deixar sua trajetória e sua poética de lado, ao contrário carregando esse legado, tal qual um velho griô – criou obras que dão respostas éticas/poéticas para o nosso tempo do agora. Os trabalhos produzidos para a Christal Galeria carregam uma vitalidade cromática e força visual impressionantes. Pinturas que jorram, em cromatismos vibrantes e figurações difusas muitas vezes, carregadas de manchas cromáticas que se impõem como uma crítica ao nosso tempo, sem deixar de produzir citações de terras distantes e sonâmbulas.

Não há nessa exposição a pretensão de construir uma narrativa visual por meio de uma sequência cronológica exata e linear, outrossim, o desejo é o de realizar conexões entre os trabalhos do presente, passando pelas duas décadas do novo milênio, atravessando os anos 1990, 1980 – período de grande vitalidade e de dedicação do artista na pintura acrítica sobre papel – e chegando aos anos 1970, como a feitura de uma cartografia, um mapa que nos guie pela vasta produção desse artista e que possa dar a ver uma unidade formal, visual e quiçá poética da construção narrativa do nosso Gabriel Garcia Marques das artes visuais em Pernambuco.

Na exposição A Escuta do Tempo – Javari chamamos atenção para o tríptico intitulado Javari – homenagem a Tom e Bruno, que consideramos como um manifesto visual que o artista produziu impactado (como todo/as nós!), com um país que historicamente mata seu povo originário e aqueles/as que se colocam como aliados/as na luta pela preservação da natureza, tema e gênero (paisagem) recorrente na produção visual do artista. José Barbosa, mais uma vez, insiste em nos lembrar que somos natureza, somos violentos/as e trágicos/as, ambíguos/as e complexos/as.

Ainda, dentro desse conjunto de poéticas inéditas, chamamos atenção para outro tríptico nomeado por Paisagem com pássaro verde, que explode em manchas cromáticas: aquece o olhar e o corpo todo, mantendo a chama acessa do esperançar por um outro devir. Certamente nota-se que o artista prima pela beleza. Além, das pinturas, O Grande Peixe I - Alexandre III e  O Grande Peixe II - Nefertiti En Grès, 2022 - para quem conhece a vasta produção de Barbosa tal representação sígnica marca presença em inúmeras de suas pinturas. Nessa versão realizada em 2022, o Grande Peixe engole e é engolido pelos mais variados elementos da natureza e figuras simbólicas que tecem uma urdidura narrativa, ora onírica, ora fantástica, ora repleta de citações da história do mundo antigo grego e do Egito.  

No conjunto de trabalhos que sustentam citações da cultura de matriz africana contamos com a pintura Ori, 2022, e com a escultura Sankofa, 2020. A representação do pássaro Sankofa, outra imagem recorrente em sua produção, habita telas, pinturas sobre papel, esculturas em madeira e em seus belíssimos entalhes. Prova, inconsciente segundo o artista, de sua memória e ancestralidade da cultura de matriz africana.  

Há ainda, para além dos trabalhos já citados, poéticas que se conectam entre si  nesse conjunto de trabalhos datados entre 1970-2022. A presença da figura feminina que ronda as narrativas do artista, ora nos retratos, ora em cenas eróticas, ora na representação simbólica da natureza como símbolo da origem da vida, da mãe terra. Essas narrativas de certa maneira homenageiam a força e a presença da mulher em torno das experiências de sociabilidades de José Barbosa: sua avó dona Biu (parteira e rezadeira, que praticamente o criou, pois dona Aurelina, se ocupava da existência dos 16 filhos/as), também chamamos atenção para a presença de Ghita Charifker (sobre isso selecionamos duas pinturas sobre papel da série, A Casa de Ghita, ainda não exibida para o grande público,  que revelam encontros constantes entre ambos) e todas as demais mulheres reais e imaginadas, que tiveram suas existências apreendidas pela mão do artista.

Entre a ficção e a não ficção, o delírio e o sonho, a vigília e a vertigem o artista se manifesta e se afirma. Neste sentido acompanho a afirmação da escritora Carola Saavedra (2022), a ideia básica que não há uma diferença psíquica entre o que vivenciamos na vigília e aquilo que sonhamos ou alucinamos, ao contrário, é no sonho, no sintoma, que está a “verdade” do sujeito.  Eis aqui nesta exposição fragmentos visuais carregados de memórias e histórias do artista José Barbosa.

Joana D’Arc Lima

 [1] Magno, Montez. JOSÉ Barbosa: 15 aquarelas e 14 talhas. São Paulo: RMG Escritório de Arte, 1981.

Curadoria: Joana D’Arc Lima

Visitação:  de 25 de agosto a 22 de outubro de 2022