Ana Michaelis: Natura Naturans – Poéticas da Natureza

Uma das maneiras de olhar para a história da arte é através da tensão entre mimesis e poiesis: a arte sendo compreendida, por um lado, como representação, imitação da natureza, e, por outro, como criação, onde o processo artístico imitaria, antes, a própria ação criadora do ser humano. Daí surge uma noção específica de técnica (technè), de onde deriva o termo latino ars, arte. 

Em um caso ou no outro, parte-se de um certo antropocentrismo, da perspectiva de um sujeito dotado de racionalidade enquanto dominação da natureza, reduzindo-a a mero objeto. 

No processo de criação de Ana Michaelis, essas relações são questionadas e por vezes invertidas, de modo que a natureza se torna, por assim, dizer, co-criadora. Ao invés de dominá-la, as obras da artista a poetizam de maneira sensível, abrindo um universo de familiaridade com a paisagem enquanto sentimento de pertencimento e estar junto. Ela sai de um lugar de mera representação, tornando-se protagonista no recorte de visualidades. Diferente de uma natureza criada, Espinosa chamou essa potência de natura naturans: uma natureza criadora, criativa, ligada ao divino.

Em sua primeira exposição individual no Recife, o público tem a oportunidade de adentrar uma paisagem composta pela riqueza da produção artística de Ana Michaelis. Encontramos espaços (dentro e fora) da Christal Galeria que são tomados por uma potência vital da artista, onde natureza e poética se confundem. Quem ali adentra, torna-se espectador sem recusar a uma poética da percepção - ou seja, pode partilhar do processo artístico em seu ímpeto de transformação. Um convite a demorar-se na paisagem, a ver o que antes não tinha razão para ser visto, encontrando também na atividade artística um espelho da natureza enquanto vestígios de força criadora: menos representação e mais poiesis

Tal passagem de mera passividade do espectador surge no convite em alguns casos ao toque, sentindo texturas (fica a dica: toquem-nas!), e, em outros, a brincar com as obras, onde a relação com elas recebe um caráter lúdico. Tal qual um quebra-cabeça, a liberdade imanente ao jogo não se reduz a um mero subjetivismo, senão nos provoca a construir a imagem das árvores como resultado do encaixe das peças.  

A ressignificação do olhar diante da natureza surge ainda na diversidade de técnicas empregadas pela artista. No uso da encáustica (do grego “enakustikos” – esquentar, queimar), técnica antiga, mas atualmente pouco utilizada, um conjunto de ceras quentes – de abelha, carnaúba, resina damar -, através do calor do fogo marca a madeira maciça. O processo requer o respeito à temporalidade da matéria, feito com rapidez para não secar, produzindo volume.

Na série em tinta acrílica, vemos árvores misturadas à penumbra, cuja técnica nos faz lembrar o sfumato renascentista, com a diferença de que as árvores são antes pintadas e só depois recebem uma camada de tinta branca. O efeito provoca a sensação de inebriamento do campo visual, de modo que a imagem quase suma da tela – como na experiência de um caminhar na floresta em meio ao nevoeiro, quando a paisagem aparece e desaparece. Resquícios de imagens que, novamente, resistem e escapam à dominação. 

Já na série em papel, vemos técnicas diversas: desde a delicadeza da aquarela, a tinta acrílica, desenhos em grafite e lápis com ponta de prata, até folhas impressas através da monotipia - registros únicos, imprecisos, que recebem alguma camada de tinta branca. São folhas encontradas pela artista em seu próprio jardim, na proximidade do seu convívio que são poeticamente transfiguradas - processos que escancaram que a natureza está presente. Paisagens aparentemente familiares a quem se depara com elas, e ao mesmo tempo criadas e atravessadas pelo afeto da memória. 

Da cera à madeira que está presente no papel ou que recebe ela própria as tintas (também elas, oriundos da natureza), ou ainda as folhas, galhos, raízes e sementes que de algum modo “tornam-se” arte – estamos diante da natureza. Novamente, uma poética do deslocamento que dissipa os limites rígidos entre arte e vida, onde uma obra cuja técnica “óleo sobre tela” traz a lembrança de que o temos ali é “natureza” sobre “natureza”. 

Ao tensionar o caráter mimético da arte, o processo de Ana Michaelis é também tecnologia. Isso porque, como propôs Vilém Flusser, tanto a arte como a tecnologia são sempre modos de transformação que criam novas formas de vida, e, que como tais, são também políticas. Lembra-se ainda as referências do campo da bioarte, onde a arte se institui como criação de novos organismos, friccionando as fronteiras entre arte e biologia, ciência e poesia. Transformações que transcendem o registro da dominação e se configuram como abertura e tradução.

Em tempos de negacionismos, crise ecológica, urgências diante dos limites do que tem sido chamado de antropoceno – a era que marca o impacto da atividade humana sobre a terra – a natureza impõe-se. As obras de Ana Michaelis nos conduzem a sentir (aesthesis) e partilhar a natureza de outras maneiras: menos objeto de representação, e mais enquanto potência criadora. Processos que nos fazem ver que modelos de tecnologia e o que estamos obsessivamente buscando sob o título de “artificial” pode também provir da arte. Que nos lembra de uma realidade inescapável e irresistível, de uma relação originária que a técnica enquanto dominação nos fez esquecer. Visitar esta exposição e interagir com ela é um convite a ver aquilo que um determinado modo de vivermos sobre a terra tornou invisível.

Filipe Campello

         Curadoria: Filipe Campello

Visitação:  de 20 de setembro a 25 de novembro de 2023