Vou criar o que me aconteceu

Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida.
(Jorge Larossa Bondía, Notas sobre a experiência e o saber da experiência)

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não.

(Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.)

De acordo com Sílvio Gallo (2002, p. 174) aprender “está para alguém que procura, mesmo que não saiba o que[,] e para alguém que encontra, mesmo que seja algo que não tenha sido procurado”. Para o autor, a aprendizagem é algo que escapa, o qual se coloca para além de qualquer controle. Em função de sublinhar alguns processos de criação amalgamados a experiências de vida, esta exposição celebra a obra de Christina Machado, conectando-a com o gesto de outros artistas que têm, neste espaço, o seu ponto de encontro.

Muitas das materialidades produzidas pela artista denotam um caráter confessional, como se fossem cápsulas do tempo e de si que, quando empunhadas por ela, transportam-na para eventos singulares de sua vida. Christina Machado, de acordo com Joana D'Arc Lima, “envereda numa narrativa reveladora de si”. Pode-se dizer o mesmo de Ana Flávia Mendonça, Badida, Carolina Cosentino, Luciana Borre e Rayellen Alves, as quais a acompanham no corpo fabulado para esta mostra, que mescla artistas presentes no acervo da Christal Galeria com outras que, a convite, se juntam a esta coletividade. Cada uma das presentes inventa suas trilhas investigativas meandrantes e dotadas de trechos subterrâneos aos nossos olhares. De acordo com Doreen Mende, esses pontos cegos são como uma palavra que escapa, a listra preta entre frames de uma película, o espaço em branco entre as letras, o silêncio entre o que se verbaliza. Não cabe representação para esse instante de hiato, ele não pode ser reificado. “Em outras palavras, esse momento de cegueira detecta e perturba as condições em que o significado emerge” (MENDE, 2013, p.106, tradução minha). 

Existe algo de inapreensível no processo de fitar trabalhos de arte de caráter autobiográfico, pois estes são evidências de trajetos de aprendizagem enfaticamente alteros. Transformar o diálogo entre diversos desses gestos é como dar a ver as inúmeras indecibilidades de uma encruzilhada. Mende propõe o termo “inspor” [inhibiting], em complementaridade à ideia de expor. Para a curadora, embora todos os seres humanos possuam um ponto cego, eles não são idênticos e, logo, não há unidade em subjetividades ladeadas. Algo semelhante ao que propõe Bondía (2002, p. 27), quando afirma que, embora um acontecimento seja comum,  “a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida”. Consequentemente, nem tudo que é visível para mim é para outrem e vice-versa. A presença dessas fendas não significa para Mende que pares como “eu” e “você” deixem de fazer sentido, mas ratificam a existência de algo entre, onde controle e orientação caem por terra. 

Se a curadoria, essa prática que se supõe cuidadora da cabeça de outrem, é uma atividade de criar arremates e arestas, seria inútil propor uma lente de aumento para algo impossível de ser apreendido? Para Bondía, “pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou ‘argumentar’, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece”. Logo, este exercício curatorial reconhece a vertigem que é mirar o obscuro, e entende que neste percurso parte deste mistério será desvelada enquanto outra permanece incógnita. Reconhece que o corpo coletivo aqui esboçado consiste em uma costura entre o enunciável e o indizível. Mas a presença dessas fendas não significa que pares como “nós" e “você” deixem de fazer sentido. Talvez parte do que você aprenda conosco sequer caiba em palavras. Apontamos para o segredo não por querermos decifrá-lo, mas para enfatizarmos seu desconhecimento.

Referências:

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev. Bras. Educ. 2002. n.19, p. 20-28.

GALLO, Sílvio. Em torno de uma educação menor. Educação&Realidade. jul/dez, 2002. p. 169-178. 

LIMA, Joana D'Arc S. Fio do tempo. In: Lima, Joana D'Arc S. Machado, Christina. (orgs). p. 4-5.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H.. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 

MENDE, Doreen. Three Short Takes on the Curatorial. In: MARTINON, Jean-Paul. (ed.).The Curatorial: A Philosophy of Curating. Londres: Bloomsbury, 2013. p. 105-108.

Guilherme Moraes

Artistas participantes da Exposição Vou criar o que me aconteceu:

Ana Flávia Mendonça, Badida, Carolina Cosentino, Luciana Borre, Christina Machado, Rayellen Alves

Curadoria: Guilherme Moraes

Visitação:  15 de junho a 02 de setembro de 2023